Terceiro volume de ‘Diários da Presidência’ revela detalhes da crise no início do segundo mandato, em 1999
No terceiro volume de seus “Diários da Presidência”, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) relata momentos de “quase desespero” no início de seu segundo mandato, em 1999, quando a crise cambial derreteu sua popularidade. Ao longo de 791 páginas que reproduzem gravações feitas para registrar seu cotidiano entre 1999 e 2000, o tucano queixa-se da insistência do PMDB na busca de cargos no governo federal e reclama da “podridão” e “corrupção” do sistema político brasileiro. FH se mostra irritado com o que considera abusos da Polícia Federal (PF) e perseguição do Ministério Público Federal (MPF) em investigações contra pessoas ligadas a seu governo.
O novo livro mostra ainda a visão do ex-presidente sobre brigas com seu antecessor e então governador de Minas, Itamar Franco, a quem chama de “egocêntrico e vingativo” e acusa de sequer ter lido o Plano Real. Outro alvo constante das críticas no diário de FH é Antônio Carlos Magalhães (ACM), então presidente do Senado, que recebe adjetivos como “super vaidoso, egocêntrico e descompromissado com tudo” nos registros feitos pelo tucano. Presidenciáveis na época, como Luiz Inácio Lula da Silva (“não tem grandeza”) e Ciro Gomes (“mau-caráter”), tampouco são poupados.
Em entrevista concedida ao GLOBO na última quarta-feira, em uma sala do seu instituto, no centro de São Paulo, FH reconheceu que o livro aborda “momentos de quase desespero". A crise financeira do início do segundo mandato por pouco não derrubou o ministro da Fazenda Pedro Malan, que manifestara ao presidente, na época, vontade de abandonar o cargo. Malan foi mantido na pasta e só deixou o ministério quando acabou o mandato de FH. Se não bastassem os problemas cambiais, o então governador de Minas, Itamar Franco, decretou a moratória da dívida do estado.
OFENSAS A ITAMAR
Em reação, Fernando Henrique destinava ofensas constantes ao seu ex-chefe nos primeiros meses de governo. “Itamar é o irresponsável de sempre. Todo mundo sabe que para fazer o Real foi uma dificuldade imensa", acusa, em um dos trechos iniciais. Em outra passagem, ao comentar uma entrevista em que Itamar dizia que “não cabe ao presidente ler o que assina”, pois a responsabilidade é de cada ministro, FH contra-atacou: “sei que nem o Plano Real ele leu, ele disse isso a mim na frente do José de Castro, quanto mais leu o orçamento alguma vez na vida”. Itamar estava sendo acusado de assinar, em 1994, quando ainda era presidente, um decreto que liberava obras para o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo, onde uma investigação posterior mostraria superfaturamento.
Em seu livro, Fernando Henrique chama seu antecessor de egocêntrico e vingativo - Marco Antônio Teixeira/ Agência O GLOBO 09.07.2002
Mais adiante no livro, FH chega a afirmar que foi uma espécie de babá de Itamar durante o período do mineiro na Presidência. “Eu sempre disfarço isso, mas fui a ama-seca dele quando ele era presidente da República. Impedi mil crises, inclusive com os militares”. A animosidade faz o tucano relembrar passagens embaraçosas do mineiro no Planalto ao gravar o seu diário. Ele relata que os militares, na época, se preocupavam com a “falta de firmeza do Itamar”.
Em um trecho do livro, publicado na edição de ontem do GLOBO pelo colunista Ancelmo Gois, o tucano lembra que, por causa do episódio em que Itamar foi fotografado no carnaval de 1994 ao lado da modelo Lilian Ramos, sem calcinha, ele foi procurado pelo general Romildo Canhim (1933-2006), então ministro da Secretaria de Administração Federal. O general contou que os chefes militares se reuniram e queriam saber se o tucano aceitaria continuar no Ministério da Fazenda caso houvesse substituição do mineiro, pelo Congresso, provavelmente por Jarbas Passarinho. “Eu disse ao Canhim que não, que nem (por) um dia”, conta FH. Na visão do tucano, o episódio de Lilian Ramos foi uma “cena ridícula de televisão”.
EXÉRCITO EM MINAS
Outro fator de tensão com Itamar envolveu a fazenda de Buritis, em Minas Gerais, que FH afirma ter passado para um de seus filhos. Em julho de 2000, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) ameaçou invadir a propriedade. Em resposta, o presidente enviou o Exército para proteger o imóvel porque, de acordo com o diário, “não posso confiar na polícia do Itamar”. O governador mineiro acusou FH de atacar a soberania de Minas e chegou a enviar uma carta com reclamações. Para o tucano, a medida foi necessária para proteger a figura do presidente da República e não suas propriedades.
Em alguns momentos do livro, o sociólogo FH se sobrepõe ao presidente e reclama da “podridão" da política brasileira. “Eu tenho preocupação porque abro os jornais e só vejo sujeira, corrupção, violência, crime e suspeitas. É difícil construir uma nação quando o clima é este, parece que tudo é podridão. Em parte é, e tenho medo de que isso cresça no futuro", relata o tucano. Perguntado nesta semana se o combate à corrupção foi uma batalha perdida em seu governo e se ele se sente responsável por parte do problema que vemos hoje, FH respondeu:
— Não vou dizer que essa batalha tenha sido perdida, mas ficou mais visível a necessidade da batalha. Aquilo que eu percebia era nada diante do que viria a acontecer. Quando tinha coisa concreta eu agia. Eu via as coisas pelos jornais. Naquela época o Ministério Público estava se constituindo. De lá para cá houve a mudança do caráter da corrupção e a procuradoria, a Justiça e a Polícia Federal amadureceram.
Apesar de dizer isso, FH não esconde a chateação com procuradores que investigaram o ex-presidente do Banco Central Chico Lopes e o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência Eduardo Jorge, acusado de envolvimento com as obras do TRT em São Paulo. Em um dos seus comentários sobre notícias que envolvem seu ex-ministro, diz reconhecer o papel importante do Ministério Público Federal no combate à corrupção, mas afirma que se deve frear “esse tom torquemadesco que existe em meia dúzia deles, por exibicionismo político”. Para ele, Eduardo Jorge foi vítima de um “massacre” para atingir seu governo. Também sobram críticas à imprensa por causa da divulgação de investigações deste episódio: “A imprensa não está para ver objetivamente quem tem razão, quem não tem. Ela é contra, quer atacar o governo, quer me desgastar. Sinto vontade às vezes de dizer: então vamos embora, ponham um melhor aqui, quero ver”.
Nos primeiros anos do segundo mandato, o governo de FH sofreu também com a instabilidade política. O então presidente relata ter sofrido pressão para fazer nomeações políticas na Petrobras. O então líder do PMDB no Senado, Jader Barbalho (PA), queria o hoje ministro da Secretaria Geral da Presidência, Moreira Franco, na estatal. “O PMDB quer posições que deem acesso a recursos, e temos que fazer uma tourada o tempo todo para evitar que isso vire um escândalo ou que que eles realmente usem esses recursos malversando-os", relata.
"PODRIDÃO NO CONGRESSO"
Ao longo do livro, ele demonstra preocupação com o PMDB e o PFL (atual DEM), os dois partidos que apoiaram seu governo. Sem citar nomes, reclama que está “apoiado por forças arcaicas, algumas delas até mesmo misturadas com a podridão do Congresso. Este é o drama, a chave da política: há um bando de gente desligada da história (...). Amanhã vão servir a qualquer outro governo, como fizeram no tempo de Getúlio, como no tempo de Juscelino.”
Terceiro volume de Diários da Presidência, de 1999 a 2000, de Fernando Henrique Cardoso - Reprodução
Questionado na entrevista de quarta-feira sobre o assédio dos peemedebistas, o tucano minimizou o episódio.
— Em todos os partidos você tem esse risco sempre — disse FH.
Ele conta ter sido pressionado por colegas de PSDB a romper com o PMDB. Cogitou a hipótese, mas não a levou adiante. Em outro trecho, desabafa que travava uma “luta para não comprometer a moralidade do governo. É duro, muito duro.”
Outro tema constantemente presente no texto é a preocupação com a falta de nomes para sua sucessão em 2002, que já se manifesta nos primeiros anos do segundo mandato.
— Para mim o melhor nome do PSDB para aquele momento era o Mário Covas. Quando ele disse que estava doente ficamos sem alternativa —contou o ex-presidente.
Dois anos antes da eleição em que Lula chegou à Presidência, o livro mostra que FH não enxergava no PT uma alternativa viável de poder. Além de dizer que o PT “nunca vai chegar ao poder”, relatou que “do jeito que vão, não serão uma alternativa de poder e acabam pondo aqui alguém mais conservador, ou um Ciro da vida, se o Mário Covas não tiver condições de enfrentar o processo eleitoral”.
Covas morreu em março de 2001 vítima de um câncer. Também eram cotados pelo tucano José Serra e Tasso Jereissati. “Serra está mais preparado, mais maduro, e até conta com mais apoios políticos que o Tasso, embora o Tasso possa ser mais leve como candidato”. Serra seria o escolhido.
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